Fundamentos da hermenêutica por Martin Heidegger

Gabriel Mazzali K.
3 min readDec 1, 2020

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Martin Heidegger

Heidegger foi o primeiro teórico estabelecer uma relação direta entre o sujeito que compreende e o mundo que o circunda, afastando definitivamente o mito da neutralidade do sujeito. É justamente com esse filósofo alemã que a hermenêutica passa a ser pensada em termos filosóficos e ontológicos, preocupada com a posição que ocupa o ser no mundo. Assim, é afastada a análise de métodos para a interpretação, afirmando Heidegger que a compreensão é, na realidade, uma questão de auto conhecimento do ser no mundo. Nas palavras de Heidegger:

Na tarefa de interpretar o sentido do ser, a presença não é apenas o ente a ser interrogado primeiro. É, sobretudo, o ente que , desde sempre, se relaciona e comporta com o que se questiona nessa questão. A questão do ser não é senão a radicalização de uma tendência ontológica essencial, própria da presença, a saber, da compreensão pré-ontológica do ser.[1]

Assim sendo, o sujeito que interpreta (o ser, ou sein, em alemão) é visto em Heidegger como relacionado a seus pressupostos existenciais e a sua facticidade, configurando um verdadeiro ser no mundo, um ser-ai (ou, em alemão, Dasein, também traduzido como pré-sença). Analisando tal conceito, Ricoeuer explicita: “Dasein designa o lugar onde a questão do ser surge, o lugar da manifestação. Compete à sua estrutura, como ser, ter uma pré-compreensão ontológica do ser”[2]

A tarefa da hermenêutica passa a ser a explicitação a respeito da constituição desse ser-ai, sendo que essa explicitação não é um acrescentar algo à metodologia das ciências do espírito, mas sim a manifestação dos fundamentos dessa metodologia. Ou seja: não se trata de uma reflexão sobre tais ciências, mas a “explicitação do solo ontológico sobre o qual essas ciências podem edificar-se”[3].

O compreender não se dirige, pois, à apreensão de um fato, mas à de uma possibilidade de ser. Não devemos perder de vista esse ponto quando tirarmos as consequências metodológicas dessa análise: compreender um texto, diremos, não é descobrir um sentido inerte que nele estaria contido, mas revelar a possibilidade de ser indicada pelo texto. Dessa forma, seremos fiéis ao compreender heirdeggeriano que é, essencialmente, um projetar num ser-lançado prévio.[4]

Destarte, fica evidenciado que compreender, para Heidegger, é a forma originária de realização da pré-sença, que é o ser no mundo. Assim, ressalta Gadamer que em Heidegger “compreender é o caráter ôntico original da própria vida”[5]. Nas palavras de Heidegger,

Não é o conhecimento quem cria pela primeira vez um ‘comercium’ do sujeito com o mundo e nem este commercium surge de uma ação exercida pelo mundo sobre o sujeito. Conhecer, ao contrário, é um modo da pre-sença fundado no ser-no-mundo. É por isso também que, como constituição fundamental, o ser-no-mundo requer uma interpretação preliminar[6]

Ainda quanto à compreensão, afirma Palmer:

A compreensão humana tornar-se a porta universal, processos, filtro, através do qual todo o pensamento de qualquer tipo devem passar. O ser do mundo, o ser da Verdade, a ser da própria existência são compreendidos. […] Compreensão não é um meio transparente, é complexamente estruturado, e quem ignora essa estrutura está em perigo[7].

É através da compreensão que ser realiza seu auto conhecimento[8]. Dada a facticidade inerente do ser, o Dasein é integrado por seus pressupostos existenciais, por seus preconceitos e pré-juizos inerentes a sua existência. Assim, o compreender se torna, a todo momento, um projetar que sofre influências diretas de tal estruturação da compreensão, dando origem ao que Heidegger chamou de “círculo hermenêutico”.

[1] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 6. Ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 41.

[2] RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. P. 30–31

[3] RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. P. 30–31

[4] RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. P. 33.

[5] GADAMER, Hans George. Verdade e métodos: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. Ed. Petrópolis: Visões, 1999. p. 393

[6] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 6. Ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

[7] PALMER. Richard R. The Relevance of Gadamer’s philosophical hermeneutics to thirty-six topics or fields of human activity. Disponível em: www.mac.edu/faculty/richardpalmer/relevance.html. Acesso em 01. Dez. 2020.

[8] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte II. 5. Ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 133.

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